sábado, 19 de julho de 2008

Goofy Molecules

O pacato cidadão sai de casa, cumprimenta os vizinhos, sorri para as criancinhas, afaga a cabeça de um cachorrinho. De repente, ele saca de seu bolso uma chave, a chave de seu carro, abre a porta, entra e senta ao volante. Seu rosto se transfigura. De simpático e sorridente, a maníaco e enlouquecido. O cidadão já não é mais pacato. Seu apêndice motorizado o corrompeu. Agora ele é o senhor motorista, pronto para fechar seus inimigos na curva, apertar freneticamente sua buzina, ameaçar atropelar velhinhas e mães com carrinhos de bebê.

Há mais de 50 anos, um desenho animado do Pateta traçava esse perfil do motorista e do trânsito da época. Dez anos mais tarde, nos anos 60, os Jetsons previam, para os nossos tempos, que os congestionamentos estariam, literalmente, suspensos. Os carros rasgariam os céus futurísticos de maneira coordenada e segura.

A previsão ficou só no mundo do desenho animado. Nem o exponencial avanço tecnológico da humanidade conseguiu refrear a insustentabilidade do trânsito nas grandes e modernas metrópoles. Nosso motorista do século 21 tende a ser mais parecido com o Pateta dos anos 50 que com o aéreo George Jetson.

E o problema não está somente nesse comportamento neurótico. Há uma forte e malévola correlação entre a neurose dos motoristas e o aumento do número de veículos nas vias. Essa relação é o fator gerador dos congestionamentos campeões na quebra de recordes, ano após ano. O excesso de veículos nas vias entope a paciência do cidadão que precisa sair de um lugar para outro da cidade, esteja ele no banco do motorista ou no do passageiro.

Todo motorista tem um lado “Pateta”. Basta a situação provocar. No desenho, o personagem da Disney faz várias barbeiragens conhecidas de quem freqüenta o trânsito metropolitano. Freia abruptamente, anda devagar demais e não dá passagem, fica zigue-zagueando pelas vias, ultrapassa sinais vermelhos, desrespeita faixas de pedestres, e, por fim, bate e quebra o carro. Comportamentos “patetas” como esse, associados a um fluxo de carros superior à capacidade da via, resultam no abominável congestionamento.

A física do trânsito

O especialista na teoria de trânsito veicular, Boris Kerner, físico pesquisador da DaimlerChrysler na Alemanha, em seu livro, A Física do Trânsito, divide a lógica do fluxo veicular em três fases. A primeira é o que ele chama de fluxo livre (do inglês, free flow). Nas condições de fluxo livre, o motorista pode escolher a velocidade e o comportamento que desejar. Dados empíricos mostram que a correlação entre o fluxo (veículos por medida de tempo) e a densidade (veículos por medida de distância) é positiva. Isso quer dizer que não importa o quão “pateta” um motorista seja, ele não vai conseguir atrapalhar o fluxo, não vai propagar o caos. Basta desviar.



Mas, essa relação é perturbada a partir do momento em que o fluxo livre chega a seu ponto máximo, com uma correspondente densidade crítica. Desse momento em diante, o trânsito não se comporta mais de maneira linear. Quando a quantidade de veículos numa via, ou seja, a densidade, se torna muito alta, o trânsito se torna metaestável. Em outras palavras, o equilíbrio é delicado, suscetível à mais ligeira alteração. Nesse estado há duas possibilidades.


Se ocorre uma pequena perturbação, o trânsito, apesar de denso, ainda é estável. O fluxo já não é livre, mas é sincronizado (synchronised flow). Se um motorista faz uma pequena barbeiragem, você até pensa em sentar a mão na buzina, mas, o nível de stress é baixo e se não for daqueles muito esquentados, você acaba deixando passar. O importante é a união do grupo. Todos juntos, a uma velocidade sincronizada, eventualmente chegam a algum lugar. Como a avenida Rebouças, em São Paulo, pouco antes do horário de pico. Os carros seguem lado a lado, quase encostados em seus vizinhos. A velocidade beira os reles 40km/h, mas, considerando o caos subseqüente, que pode (e normalmente vai) se instaurar, está ótimo. Nessa hora o motorista tem a noção desesperadora de que, se ocorrer um acidente ali na frente, o trânsito terá problemas, mas segue otimista, com fé na ordem natural das coisas.

No entanto, esse mesmo equilíbrio delicado pode ser abruptamente interrompido por algo maior, digamos uma jamanta com o pneu furado. A partir desse instante, o trânsito se torna instável e o que Boris Kerner chama de congestionamentos dinâmicos (moving jams) começam a emergir. É nessa hora que o espírito “pateta”, que não se manifestou no momento da partida e foi abafado durante a fase de fluxo sincronizado, começa a tomar conta da grande massa de motoristas na pista.



Os carros raivosos começam a buscar uma válvula de escape. Cortam freneticamente de uma via para a outra, porque, afinal, a do outro está sempre andando mais. Na ida, fecham o carro da direita e na volta, o da esquerda. Buzinam impacientemente quando o sinal ameaça ficar verde. Todo segundo é valioso e perder um só que seja é o bastante para instigar a ira. É nessa hora que os mais inesperados palavrões e gestos obscenos são pronunciados. Mães de família esquecem que os filhos estão no banco de trás e desabafam sua revolta. O outrora pedestre cavalheiro, por trás do volante nessa situação, vira o motorista grosseiro e machista: “Só podia ser mulher!”. E os motoboys? Como se não bastasse o topete de passar à frente dos carrões, ainda buzinam como se a rua fosse deles, ameaçando retrovisores alheios.

Solução?

É esse estado de espírito coletivo que faz com que o fluxo de carros não se comporte como fluxos naturais. Se todos tivessem auto-controle, o trânsito iria permanecer lento, mas, estável. Mas, tratam-se de seres humanos e não de personagens de desenho animado. O ponto de saturação de cada um é variável e uma medida pública, qualquer que seja, não consegue controlar as nuances do comportamento humano. É possível identificar comportamentos coletivos semelhantes em determinadas populações motorizadas, como a de Belém, cidade brasileira onde mais se aperta a buzina (por causa disso muitos motoristas, de acordo com o Código de Trânsito Brasileiro , estão cometendo infração leve e podem perder 3 pontos na carteira). Ou, em alguns países da Europa, onde as pessoas parecem respeitar melhor as regras de trânsito. Ainda assim, exercer um controle ideal na subjetividade do motorista é impraticável.

Resta ao engenho humano, lançar mão de recursos que minimizem a densidade de veículos para que não chegue a ser crítica. A tecnologia pode desempenhar um papel crucial. O uso de redes neurais de sensores para interpretar os fluxos em diferentes áreas e um poderoso sistema computadorizado de análise de trânsito, associados a medidas eficazes de controle das vias públicas, como o monitoramento da quantidade de carros circulando na via, surtem efeito de fluidificação do trânsito, principalmente nos horários críticos. São medidas como o polêmico rodízio, ou ainda o incentivo ao uso de transportes coletivos, como ônibus e metrô, ou alternativos como a bicicleta e, por fim, ao uso mais inteligente dos carros, fazendo com que a energia gasta e o espaço ocupado por um veículo não sejam usufruídos por apenas um ocupante.

O ideal é evitar que o caótico cenário gerado pelo excesso de veículos na pista dê nos nervos dos motoristas. Assim, os efeitos do eventual comportamento irracional do Homo urbanus, podem ser minimizados, fazendo com que os famigerados congestionamentos dinâmicos não nos assombrem com tanta freqüência. Pense nisso antes de deixar o “pateta” tomar conta de você.

Dois vídeos bem ilustrativos:

  • Indicação do Rafael quando comentou, no blog 42 opiniões, sobre assunto semelhante: "esse videozinho da universidade de nagoya: http://www.youtube.com/watch?v=Suugn-p5C1M ? mostra como congestionamentos podem ocorrer "espontâneamente" mesmo num trajeto livre." )


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