segunda-feira, 3 de novembro de 2008

Paulista paulistana

Essa é a minha terceira temporada em São Paulo. A primeira foi com uma semana de idade, recém chegada ao mundo por intermédio de um médico em Presidente Prudente, que, ouvi dizer, é muito, muito quente. Depois de uma semaninha de vida, uma paulista em meio aos paulistanos.

Não posso dizer que lembro com clareza dessa época. Lembro-me apenas das lembranças de minha mãe. Do orgulho com que ela revelava o nosso (antigo) endereço: esquina da Augusta com a Alameda Lorena. O emprego do meu pai: lingüiça do Yázigi, na 9 de julho. Como era bizarra a profissão de meu pai... até eu aprender que um lingüista é bem diferente de uma lingüiça. Anos na obscuridade e uma vida com uma inexplicável aversão à carne de porco.

Aqui tive minha primeira cachorrinha, Camila. Adorávamos, Camila e eu, o Ibirapuera e sua grama infinita. Ademais eram passeios de carrinho pela quarta maior metrópole do mundo, orgulhosa, curiosa, bem-vestida: um bebê cosmopolita.

Ao fim de meu primeiro ano, houve um breve intervalo em minha exploração da paulicéia. Três palavras o explicam: pai, mestrado, UNICAMP. Agora meu pai seria um sociolingüiça (cada vez mais complexo, mas estava prestes a descobrir a verdade).

O qúadruplo da minha idade se passou e, com meu pai-mestre, estava eu novamente aportando na Paulicéia. Pouca coisa havia mudado. O Ibirapuera ainda estava lá, com sua grama agora ligeiramente menos infinita. Lembro claramente que foi nessa época que adquiri a minha primeira noção de multidão e também, paradoxalmente, a minha primeira noção de solidão. Aos cinco já vivia, como vivem muitos dos milhões de brasileiros e estrangeiros de São Paulo: sozinha na multidão. Ainda bem que havia a Camila.

Retomei minha exploração. Mundo, mundo, vasto mundo. São Paulo era um mundo. Para mim um mundo de cultura (infantil). Show do Gilberto Gil (Universo paralelo -- Sítio do Pica-pau Amarelo --No país da fantasia --Num estado de euforia --Cidade Polichinelo ). Mágica na Paulista. Os Saltimbancos. "Au, au, au, i-ó, i-ó" não saía da minha cabeça. Aliás, minha ligação com a metrópole tinha a trilha-sonora da peça.

Ainda hoje, quando percorro as trilhas da capital, em meio a maravilhas e mazelas, ouço a voz do jumento, velho e sabido, prevenindo: "A cidade é uma estranha senhora que hoje sorri e amanhã te devora".

Mas, nesse tempo havia meus pais e suas mãos a me guiarem pela cidade. A estranheza da Senhora Paulicéia se dissipava naquelas mãos e eu dormia, ainda na esquina da Augusta com a Alameda Lorena, enquanto tocava silenciosamente, como num filme, a letra de Chico Buarque na melodia do italiano (Bardotti):

"Dorme a cidade
Resta um coração
Misterioso
Faz uma canção
Soletra um verso
Lá na melodia
Singelamente
Dolorosamente (...)"

Mais uma interrupção. Essa muito, muito longa. Pai, doutorado, Washington-DC, Georgetown University. De lá rodei o mundo, rodei pião, e parei meio tonta, quase 30 anos depois, casada, mãe e aluna de jornalismo da ECA-USP.

Sinto que até hoje não conheço São Paulo e os vastos mundos que a compõem. Estou na mais populosa capital brasileira e vivo meio que cercada apenas pelo meu mundinho. Mais um na multidão.

Às vezes mordo um pedaço da cidade nos cinemas, teatros, parques e engarrafamentos. Bebo um gole de Sampa pelos ouvidos atentos às gírias e ao sotaque, buzinas e sirenes e os enlouquecedores agudos dos motoboys. São Paulo penetra em meus olhos pelos muros e túneis pichados, os arranha-céus da Berrini, da Paulista e da Faria Lima. Os perfumes da cidade exalam dos rios Pinheiros e Tietê, dos diversos pescoços e pulsos que consomem nos shopping centers, e às vezes, no Butantã, sinto o cheiro de damas da noite, damas de toda sorte e espécie. Algumas delas são flores, outras gostariam de ser... Todos os meus sentidos captam, o mais que podem, retalhos da cidade.

Tal como a velha e estranha senhora, o que faço com maior freqüência é devorar São Paulo, sem mastigar, sem distingüir o que há de bom do que há de ruim. Engolindo os dias e as noites, os meses e os anos. Ainda assim "a cidade não para, a cidade só cresce" e é curioso o quanto ainda há para conhecer, para apreender, para inalar, para interpretar. E o melhor de tudo é que, com a nova profissão que escolhi, posso divulgar São Paulo, suas mazelas e maravilhas. E é exatamente nesse diálogo com a multidão, nessa inspiração e expiração da cidade, que se faz, dentro de mim, a certeza de não mais estar sozinha.

"Doce a música
Silenciosa
Larga o meu peito
Solta-se no espaço
Faz-se certeza
Minha canção
Réstia de luz onde
Dorme o meu irmão"

...Mas, como ainda sinto falta daquelas mãos...

quinta-feira, 11 de setembro de 2008

Necessidades, vontades, desejos e minhocas


Dogs can be taught very useful things.
But not if we forgive them every time they obey their own nature.”
do filme Dogville, de Lars von Trier



A (falsa) noção de liberdade e anonimato que permeiam as páginas virtuais da rede fizeram à sociedade o grande serviço de derrubar pelo menos algumas das máscaras, que todos, sem exceção, são obrigados a sustentar sempre que estão "sociais". É como a metáfora em inglês "to open a can of worms". A internet e suas pseudoleis de anonimato e liberdade de expressão abriram uma lata, cujas minhocas (worms) escancaradas aparecem, feias e pegajosas, tal como vemos a perversão, o preconceito e outros “maus” sentimentos. A reação natural (e social) é o nojo e a indignação. Mas, não temos nojo da minhoca em si; o que verdadeiramente nos deixa indignados é a constatação de que aquilo que se estrebucha, que se resseca diante do nosso olhar crítico é, nada mais, nada menos, que um ser humano, como eu, como você. Podemos não ser iguais, mas não somos, tampouco, diferentes no que diz respeito às características que nos classificam como homo sapiens, ou seja, somos os famosos possuidores do polegar opositor e do telencéfalo altamente desenvolvido.


Pedofilia, racismo, preconceito, tráfico de drogas, violência, entre outras ditas perversões, não são aceitas na superfície da malha social. São, porém, fomentadas secretamente dentro das mentes e emoções incontroláveis de cada um, nas casas e zonas de prostituição, nas bocas de fumo das favelas, nas vontades e desejos reprimidos, nas ruas escuras, onde mendigos, índios e travestis são mortos por serem o que são. Mais modernamente, estão sendo estampadas em inúmeras páginas da World Wide Web.


O fenômeno é intensificado na Internet porque as pessoas, sob a ilusão do anonimato, mostram suas reais faces virtuais (ou seria "suas virtuais faces reais"?). Assim, as mais diversas comunidades são criadas em honra dos ditos pecados capitais. Ninguém tem vergonha de assumir gostos marginais quando acha que não poderá ser identificado. A internet vem desvelando o que há tempos se escondia, se reprimia, se criminalizava. Se tantas pessoas participam de comunidades desse tipo, podemos considerar tais manifestações como exceções sociais a ponto de chamá-las de perversões?

perversão*


do Lat. perversione
s. f.,
ato ou efeito de perverter;
uso desviado do normal;
alteração de uma função normal;
corrupção;
depravação.

Muita gente não enxerga, mas a Internet poderá estarmesmo nos fazendo um favor. Não o de desmascarar e prender os pedófilos e traficantes virtuais (o que pode até ser necessário, porém não extirpa o problema), mas o de nos dar uma oportunidade de problematizar o sentido de sermos o que somos e como somos. Precisamos avaliar até que ponto esses diques que construímos socialmente irão agüentar a pressão daquilo que nos faz humanos; animais, portanto. Precisamos entender porque vivemos vidas pra lá de duplas; em muitos casos, múltiplas.


Lembro agora do filme Eyes Wide Shut, de Stanley Kubrick. A mansão onde ocorrem as orgias pode aqui ser usada como uma metáfora desses submundos virtuais. Do lado de fora, há a instituição familiar que deve permanecer de pé a qualquer custo. Um exemplo cinematográfico do choque entre os mundos que se contradizem, mas, que, de maneira paraconsistente, coexistem.


Os instintos básicos tão distribuídos por nossa complexidade, são agora desnudados através das paredes aparentemente invisíveis (como no filme Dogville – mais um estrelado por Kidman) dos guetos virtuais. Mas, ao contrário dos habitantes de Dogville, podemos ver através das portas e paredes das comunidades destes supostos submundos. Descobrimos, atônitos, que o homem não é tão civilizado quanto pensamos. Ele continua tendo vontade de comer (em todas as conotações da palavra), beber e sobreviver, como qualquer outro ser vivo. Soma-se a isso o preconceito contra o que parece ser diferente e as tentativas eternamente fracassadas de explicar, com elementos do mundo conhecido, aquilo que não se conhece. Podemos nos tornar cada vez mais complexos, mas estaremos eternamente próximos ao que sempre fomos. Evolução? Que nada.


Bebida é água
Comida é pasto
Você tem sede de quê?
Você tem fome de quê?”


PS: Enquanto escrevia esse texto, meu marido e meu filho jogavam compulsivamente na sala...um jogo de luta...acho que era Tekken . Meus cachorros dormiam porque, como o dia estava chuvoso, não podiam sair para passear, brincar e marcar território. Também dormi entre uma palavra e outra. O mundo dos sonhos ajudou-me a pensar. Agora estou voltando definitivamente à minha querida cama, de onde nada vai me tirar, além, é claro, daquela vontade inexorável de ir ao banheiro...ou talvez de dar uma assaltada na cozinha...necessidades, vontades. So good to be alive...

*verbete do dicionário online Priberam

PS2: Esse clip do Pearl Jam tem tudo a ver...



sábado, 19 de julho de 2008

Goofy Molecules

O pacato cidadão sai de casa, cumprimenta os vizinhos, sorri para as criancinhas, afaga a cabeça de um cachorrinho. De repente, ele saca de seu bolso uma chave, a chave de seu carro, abre a porta, entra e senta ao volante. Seu rosto se transfigura. De simpático e sorridente, a maníaco e enlouquecido. O cidadão já não é mais pacato. Seu apêndice motorizado o corrompeu. Agora ele é o senhor motorista, pronto para fechar seus inimigos na curva, apertar freneticamente sua buzina, ameaçar atropelar velhinhas e mães com carrinhos de bebê.

Há mais de 50 anos, um desenho animado do Pateta traçava esse perfil do motorista e do trânsito da época. Dez anos mais tarde, nos anos 60, os Jetsons previam, para os nossos tempos, que os congestionamentos estariam, literalmente, suspensos. Os carros rasgariam os céus futurísticos de maneira coordenada e segura.

A previsão ficou só no mundo do desenho animado. Nem o exponencial avanço tecnológico da humanidade conseguiu refrear a insustentabilidade do trânsito nas grandes e modernas metrópoles. Nosso motorista do século 21 tende a ser mais parecido com o Pateta dos anos 50 que com o aéreo George Jetson.

E o problema não está somente nesse comportamento neurótico. Há uma forte e malévola correlação entre a neurose dos motoristas e o aumento do número de veículos nas vias. Essa relação é o fator gerador dos congestionamentos campeões na quebra de recordes, ano após ano. O excesso de veículos nas vias entope a paciência do cidadão que precisa sair de um lugar para outro da cidade, esteja ele no banco do motorista ou no do passageiro.

Todo motorista tem um lado “Pateta”. Basta a situação provocar. No desenho, o personagem da Disney faz várias barbeiragens conhecidas de quem freqüenta o trânsito metropolitano. Freia abruptamente, anda devagar demais e não dá passagem, fica zigue-zagueando pelas vias, ultrapassa sinais vermelhos, desrespeita faixas de pedestres, e, por fim, bate e quebra o carro. Comportamentos “patetas” como esse, associados a um fluxo de carros superior à capacidade da via, resultam no abominável congestionamento.

A física do trânsito

O especialista na teoria de trânsito veicular, Boris Kerner, físico pesquisador da DaimlerChrysler na Alemanha, em seu livro, A Física do Trânsito, divide a lógica do fluxo veicular em três fases. A primeira é o que ele chama de fluxo livre (do inglês, free flow). Nas condições de fluxo livre, o motorista pode escolher a velocidade e o comportamento que desejar. Dados empíricos mostram que a correlação entre o fluxo (veículos por medida de tempo) e a densidade (veículos por medida de distância) é positiva. Isso quer dizer que não importa o quão “pateta” um motorista seja, ele não vai conseguir atrapalhar o fluxo, não vai propagar o caos. Basta desviar.



Mas, essa relação é perturbada a partir do momento em que o fluxo livre chega a seu ponto máximo, com uma correspondente densidade crítica. Desse momento em diante, o trânsito não se comporta mais de maneira linear. Quando a quantidade de veículos numa via, ou seja, a densidade, se torna muito alta, o trânsito se torna metaestável. Em outras palavras, o equilíbrio é delicado, suscetível à mais ligeira alteração. Nesse estado há duas possibilidades.


Se ocorre uma pequena perturbação, o trânsito, apesar de denso, ainda é estável. O fluxo já não é livre, mas é sincronizado (synchronised flow). Se um motorista faz uma pequena barbeiragem, você até pensa em sentar a mão na buzina, mas, o nível de stress é baixo e se não for daqueles muito esquentados, você acaba deixando passar. O importante é a união do grupo. Todos juntos, a uma velocidade sincronizada, eventualmente chegam a algum lugar. Como a avenida Rebouças, em São Paulo, pouco antes do horário de pico. Os carros seguem lado a lado, quase encostados em seus vizinhos. A velocidade beira os reles 40km/h, mas, considerando o caos subseqüente, que pode (e normalmente vai) se instaurar, está ótimo. Nessa hora o motorista tem a noção desesperadora de que, se ocorrer um acidente ali na frente, o trânsito terá problemas, mas segue otimista, com fé na ordem natural das coisas.

No entanto, esse mesmo equilíbrio delicado pode ser abruptamente interrompido por algo maior, digamos uma jamanta com o pneu furado. A partir desse instante, o trânsito se torna instável e o que Boris Kerner chama de congestionamentos dinâmicos (moving jams) começam a emergir. É nessa hora que o espírito “pateta”, que não se manifestou no momento da partida e foi abafado durante a fase de fluxo sincronizado, começa a tomar conta da grande massa de motoristas na pista.



Os carros raivosos começam a buscar uma válvula de escape. Cortam freneticamente de uma via para a outra, porque, afinal, a do outro está sempre andando mais. Na ida, fecham o carro da direita e na volta, o da esquerda. Buzinam impacientemente quando o sinal ameaça ficar verde. Todo segundo é valioso e perder um só que seja é o bastante para instigar a ira. É nessa hora que os mais inesperados palavrões e gestos obscenos são pronunciados. Mães de família esquecem que os filhos estão no banco de trás e desabafam sua revolta. O outrora pedestre cavalheiro, por trás do volante nessa situação, vira o motorista grosseiro e machista: “Só podia ser mulher!”. E os motoboys? Como se não bastasse o topete de passar à frente dos carrões, ainda buzinam como se a rua fosse deles, ameaçando retrovisores alheios.

Solução?

É esse estado de espírito coletivo que faz com que o fluxo de carros não se comporte como fluxos naturais. Se todos tivessem auto-controle, o trânsito iria permanecer lento, mas, estável. Mas, tratam-se de seres humanos e não de personagens de desenho animado. O ponto de saturação de cada um é variável e uma medida pública, qualquer que seja, não consegue controlar as nuances do comportamento humano. É possível identificar comportamentos coletivos semelhantes em determinadas populações motorizadas, como a de Belém, cidade brasileira onde mais se aperta a buzina (por causa disso muitos motoristas, de acordo com o Código de Trânsito Brasileiro , estão cometendo infração leve e podem perder 3 pontos na carteira). Ou, em alguns países da Europa, onde as pessoas parecem respeitar melhor as regras de trânsito. Ainda assim, exercer um controle ideal na subjetividade do motorista é impraticável.

Resta ao engenho humano, lançar mão de recursos que minimizem a densidade de veículos para que não chegue a ser crítica. A tecnologia pode desempenhar um papel crucial. O uso de redes neurais de sensores para interpretar os fluxos em diferentes áreas e um poderoso sistema computadorizado de análise de trânsito, associados a medidas eficazes de controle das vias públicas, como o monitoramento da quantidade de carros circulando na via, surtem efeito de fluidificação do trânsito, principalmente nos horários críticos. São medidas como o polêmico rodízio, ou ainda o incentivo ao uso de transportes coletivos, como ônibus e metrô, ou alternativos como a bicicleta e, por fim, ao uso mais inteligente dos carros, fazendo com que a energia gasta e o espaço ocupado por um veículo não sejam usufruídos por apenas um ocupante.

O ideal é evitar que o caótico cenário gerado pelo excesso de veículos na pista dê nos nervos dos motoristas. Assim, os efeitos do eventual comportamento irracional do Homo urbanus, podem ser minimizados, fazendo com que os famigerados congestionamentos dinâmicos não nos assombrem com tanta freqüência. Pense nisso antes de deixar o “pateta” tomar conta de você.

Dois vídeos bem ilustrativos:

  • Indicação do Rafael quando comentou, no blog 42 opiniões, sobre assunto semelhante: "esse videozinho da universidade de nagoya: http://www.youtube.com/watch?v=Suugn-p5C1M ? mostra como congestionamentos podem ocorrer "espontâneamente" mesmo num trajeto livre." )


sexta-feira, 18 de julho de 2008

O xis de Michelly

Entre fraldas, mamadeiras e roupinhas miúdas, imaginava encontrar, no chá de bebê de minha amiga, mulheres conversando alegremente, tomando o pressuposto chá, fofocando e comendo guloseimas. Mas, em contraste com os tons bebê das roupinhas, estava o colorido da diversidade de gêneros ali presentes. Uma loira de um metro e oitenta e seis, um casal gay, algumas lésbicas e uma esmagadora maioria de heterossexuais, na qual, acredito, me incluía. Minha amiga, a futura mamãe, havia trabalhado na produção da última peça do Clodovil e convidou, além das pessoas esperadas, as amizades que fez naquele período. E foi em meio a essa diversidade que conheci Michelly, a loira de 1,86: uma travesti de 35 anos, estilista e casada há 14.

Curioso é que, embora todos estivessem muito interessados na futura mamãe e bebê, era a travesti o maior alvo das atenções. Assim, após a tradicional entrega de presentes, procedeu-se ali, naquele cenário atípico, e, de forma muito natural e informal, uma longa entrevista coletiva com a estilista de fala suave e gestos elegantes.

Lembro que, após esse dia, comecei a ver a sexualidade humana com outros olhos. As respostas de Michelly me fizeram refletir acerca da miopia com que costumava (tentar) enxergar a diversidade sexual. Óbvio que todos sabem existir variações. Papai e mamãe, mamãe e papai, meia-nove, oral, anal, vibradores, e tudo o mais que as revistas femininas têm ousado publicar.

Evidente também que todos já viram travestis na televisão, nas ruas da cidade, no cinema, no Jornal Nacional (principalmente após o caso Ronaldo). Mas, quantas pessoas olham de verdade para uma travesti, sem pensar no grotesco, no absurdo, na aberração? Mais ainda, quantas pessoas compreendem sua existência e a demanda social, psicológica e sexual por esse gênero?

Afinal, onde estão as travestis do/no mundo? Será que são assim tão poucas ou somos nós que fingimos não percebê-las? E como é possível não percebê-las?? Lembrei daquela história de que os esquimós conseguem diferenciar os mais diversos tons de branco. Se esse povo, seres humanos como nós, enxerga tanta diversidade no que nos parece ser uma única cor, então, podemos tentar também acreditar que o que entendemos por sexualidade pode ter um sem-número de nuances que desconhecemos. Sob o efeito dessa reflexão prosaica é que agora conto um pouco a história do chá de bebê, ou melhor, a história de Michelly:

Roberto, do casal homossexual, era o mais ansioso para abordar Michelly, pois a havia reconhecido de um evento gay: "Você é a Michelly X, que ganhou o concurso Miss Brasil Gay 2000, não é?"

Sim, Michelly X (ninguém quis saber o nome que ela tinha antes... e o X é em homenagem à Xuxa, sua ídola de infância), uma travesti com uma beleza difícil de contestar, já participou de inúmeros eventos gays São Paulo afora e ganhou vários títulos de beleza. Não fosse pela inviabilidade social, acredito ter-lhe sido possível vencer muitas candidatas ao concurso convencional de “Miss Brasil ”.

Quando era menino, Michelly já sentia que era diferente, mas não entendia o porquê. Afinal, na escola, em casa, na casa dos parentes e vizinhos em Tatuapé, na TV, nos desenhos animados, nos livros didáticos, em nenhum lugar, se falava do que ela estava sentindo e, aos doze, no limiar da adolescência, quando todos buscam a aceitação social, lá estava ele fantasiando, não em ter uma mulher, mas em sê-la.

Sua carreira como estilista começou cedo. Antes dos 18, já tinha uma boa carteira de clientes e começava a fazer sucesso até entre celebridades, quando se deu, quase de forma acidental, sua transformação. Primeiro, para se livrar do incômodo da barba, fez depilação a laser e ficou com a cara lisinha. Quantos homens heteros não ficariam satisfeitos com esse resultado?

Empolgou-se com a sutil feminilidade que a ausência da barba lhe conferiu e, foi gradualmente tomando outras medidas para se travestir. Suas sobrancelhas passaram a ser arqueadas e impecavelmente desenhadas, sem um pêlo fora do lugar. Deixou as unhas crescerem e volta e meia brincava de passar esmalte. Esse é o ponto de sua vida em que cultivou o visual andrógino. Era um momento intermediário, em que não parecia nem homem, nem mulher. Não se sentia atraente.



Foi a época em que mais sofri. Saía na rua e as pessoas me xingavam de viado pra baixo, achavam que eu era uma aberração. Uma coisa estranha. Nem lá, nem cá.


A resposta foi peruca e enchimento. Mas, só tinha coragem nas baladas. Isso foi na maioridade. Era uma drag queen de 21 anos, fingia que estava apenas divertindo o público, quando na verdade desabafava, através do exagero, sua vontade de ser mulher. Pensava que se todos já a hostilizavam com o visual andrógino, imagine então se a vissem travestida. No exagero, por trás da peruca rosa da drag, estava protegida. Não queria que mexessem com ela. Não desse jeito.


Belo dia, resolveu fazer uma experiência. Pegou uma roupa que qualquer mulher discreta se orgulharia em usar, encaixou uma peruca loira, e resolveu caminhar pelo lado selvagem.

Holly came from Miami FLA
Hitch-hiked her way across the USA
Plucked her eyebrows on the way
Shaved her leg and then he was a she
She says, hey babe, take a walk on the wild side
Said, hey honey, take a walk on the wild side”

Velvet Underground


A moça entrou no trem, sentou-se comportadamente, cruzou as longas e depiladas pernas, acomodou os braços sobre a bolsa e disfarçou, dirigindo o olhar à triste paisagem da metrópole. Estava radiante! Esforçava-se absurdamente para conter o sorriso. Ninguém, absolutamente ninguém, lhe dirigiu uma palavra. Os olhares, embora curiosos de seus muitos centímetros e fartas carnes, não pareciam reprová-la. Eram apenas curiosos. Como é bom não ser percebida!

Epifania! Esse foi o dia em que desafiou a sentença a ela empregada no momento de sua concepção. Num ato de mor rebeldia, em desafio ao aparentemente inexorável XY, seria XX, ou apenas X. Michelly X. E viva o silicone! Viva o laser e outras tecnologias cosméticas. Porque, sim, ela podia ser feliz como queria.


Se Fulana de tal pôde deixar de ser quadrada e nariguda, por que Michelly não poderia ser simplesmente uma mulher? Se o homem pôde fantasiar com o pássaro e inventar o avião, sonhar com o fundo do mar e inventar o submarino, invejar o sol e iluminar a noite com a eletricidade, não poderia ela inventar uma mulher em seu próprio corpo?


Ninguém fica por aí dizendo que voar de avião é uma aberração porque é contra a natureza ou contra “para o que se nasce”. Ninguém se importa em usufruir do legado tecnológico da humanidade para se aperfeiçoar, mudar a cor do cabelo, disfarçar os defeitos, curar doenças, amenizar sofrimentos. Por que cargas d'água, então, as pessoas insistem em chamar as travestis de aberrações, simplesmente alegando que é “contra a natureza”? Mundinho complicado.


Mas, lá estava ela caminhando gloriosa e corajosamente com seus agora 1,96 metros (os 10 centímetros a mais se devem aos essenciais saltos agulhas, nos quais, recorda-se, foi difícil encontrar equilíbrio no começo), como numa passarela, sob o som ensurdecedor dos aplausos imaginários, cega pelos flashes invisíveis dos olhares deliciosamente curiosos, expondo, a Deus e a todos, o gênero* para o qual nasceu.


Tanto glamour e felicidade, como o mundo é justo, há de ser quebrado pelo outro lado da questão. Pensa que é fácil ser mulher? Não é não. Principalmente para um homem! Desde o preço das roupas, às intermináveis seções de salão de beleza, até os indesejáveis efeitos colaterais das doses e overdoses hormonais. Acontece que, por uma mistura de falta de coragem, excesso de vergonha e ausência de uma assistência médica especializada no atendimento ao gênero, os hormônios femininos costumam ser auto-administrados pelas próprias travestis que vão se orientando entre elas, correndo riscos severos de adquirir problemas físicos e psicológicos.


Michelly tomou os tais hormônios. Qualquer travesti que quer ser bonita tem que tomar. De preferência, desde a adolescência. Ela não teve essa chance. Beirava os 30 quando resolveu se arriscar. Mesmo assim, no começo, o resultado foi fantástico. Pele mais lisinha, voz mais macia e emoções que, apesar de toda a vontade de ser fêmea, nunca antes havia experimentado: vontade de chorar à toa, instinto maternal exacerbado, e uma temível redução no apetite sexual.


Tinha nojo de sexo. Se tivesse que fazer um oral, então, eu vomitava. Logo eu, que adorava! Queria namorar e tal, mas para transar tinha que ser com muito carinho. Fiquei uns seis meses sem fazer porque eu não tinha tesão nenhum. Eu e meu namorado tivemos problemas sérios. Tive até vontade de fazer cirurgia.


E quem dera esses tivessem sido os únicos problemas. Além dos hormônios, Michelly tomava remédios para emagrecer. Queria ser linda e esbelta, pois, um homem que decide ser mulher não pode querer ser qualquer mulher! É incrível como as pessoas cobram mais da travesti. Uma mulher normal pode ter bigode, barriga, celulite, unhas por fazer, mas a travesti não. Tem que estar impecável, senão já falam logo que parece homem. Olha o tamanho da mão! Do pé! Olha o gogó! Que feminina, que nada. Maior voz grossa. Ela é enorme! Como se a Daniella Cicarelli não tivesse uma voz mais grossa que a dela e Luciana Gimenez e Ana Hickman não tivessem exatamente seus 1,86 metros. E mulheres altas quase sempre calçam mais de 40 mesmo. Sem se dar conta, Michelly conhecia bem a verdade de Sartre: "O inferno são os outros" .


Assim, devido à perigosa mistura entre hormônios, remédios para emagrecer e uma vida social regada a álcool, começou a desenvolver sérios problemas psicológicos, como a depressão e a síndrome do pânico. Resultado: foi forçada a parar com as doses cavalares de hormônios femininos e com o tão necessário remédio para emagrecer. Engordou uns 20 quilos e ficou mais deprimida... e menos feminina.


Recorreu então ao silicone e, com uma alegre excitação, viu surgir apetrechos muito mais efetivos que os peiticos derivados dos hormônios. Perdeu alguns quilos, mas, não conseguiu contornar seus desentendimentos com a balança. Já os problemas psicológicos, embora mais atenuados, ainda estão longe de ser resolvidos.

Pensa em fazer yoga. Iria ajudar nas duas coisas. Precisa aprender a respirar, a relaxar. Prometi passar-lhe o contato da minha professora. Imaginei, com uma divertida curiosidade, a altíssima travesti , invertida com a cabeça no chão e os pés no ar.


Apesar de tudo, Michelly se considera uma pessoa, em particular, uma travesti de sorte. Primeiro, porque, ao contrário da maioria de suas colegas de gênero, conseguiu encontrar uma relação estável. São quatorze anos juntos. Uma vida. Não conheço nenhum outro caso igual à gente. Segundo, porque não precisou recorrer à prostituição, como acontece em muitos casos. Finalmente, atribui toda essas sortes a uma sorte maior: em todas as etapas de sua transformação, teve sempre o apoio irrestrito de sua família. Quando muitas são rejeitadas pelos pais e familiares, Michelly foi acolhida. Só tenho a agradecer à minha mãe, meu pai, minha tia, todos. E é assim que tem conseguido saborear e digerir tanto os doces, quanto os amargos frutos de sua escolha.


Para quebrar o clima melancólico, Duda (também do casal gay) interfere: “Posso te fazer umas perguntas indiscretas? Você é ativa ou passiva? E o que você pensa dos homens que procuram travestis?"

Com meu namorado, não. Ele gosta de ser ativo. Sempre gostou. Mas, eu não tenho esse problema. Já fui ativa em outras situações e não tenho o menor problema com isso, só que ele só me curte passiva. Mas, eu não tenho cabeça de transexual, que acha que é uma mulher.


A travesti gosta de ser feminina, mas normalmente não tem problema com o pênis: gosta dele e sabe usar. A transexual olha para o pênis no espelho e passa mal, quer tirar. Tem horror a ser ativa. Ao contrário da maioria das travestis, ela não quer ir para a balada e levar uma vida de glamour. Quer morar numa casinha e ter um maridinho, ter uma vida normal. Não quer nem pensar em ser viril, por isso tem a necessidade de operar. Dizem que quando operam passam a ter o prazer igual ao da mulher. Particularmente, Michelly não sabe muito o que é isso, mas garante que a grande quantidade de hormônios também influencia a querer tomar essa decisão, como quase aconteceu com ela. E isso foi uma das coisas que a fez parar. Estava ficando louca.


Os homens que procuram travestis também variam muito de perfil, mas, em geral, nenhum homem procura uma travesti esperando encontrar apenas uma mulher. Acontece isso de vez em quando com homens "que não têm muita escolha". Normalmente são pouco atraentes, financeira e esteticamente falando. Desejam ficar com uma mulher bonita, mas não têm, digamos, os requisitos para isso. Procuram travestis por carência. Ficam lisonjeados com a atenção da travesti, porém, não a curtem de fato.

Mas, a partir do momento em que ele tem a opção de ficar com uma mulher bonita e interessante, como no caso do Ronaldo, que, apesar de não ser bonito, é rico e famoso, e opta por uma travesti, desculpe, mas, é porque realmente está desejando aquela figura da mulher com o pênis. É uma fantasia que ele tem. Por mais que não seja passivo na relação. Há homens que só querem fazer o ativo, mas têm que saber que tem um pinto lá pendurado. É meio louco isso.

E homem que curte travesti, em geral, não curte gay masculino, porque ele não consegue sair com outro homem. Ele não consegue ter tesão. Não é porque ele não tem coragem de assumir que é gay, como muitos dizem. Ele simplesmente não sente tesão se os contornos não forem femininos. E a figura do pênis é essencial. Tem homem que gosta apenas de saber que tá lá, outros gostam de pegar, outros têm que fazer oral, mas não querem ser passivos, outros querem o troca-troca, mas, raros são os que não querem ver.

O pênis ereto é o inqüestionável indício de que uma travesti está com tesão. Já o desejo da mulher é um mistério demasiado incógnito para alguns homens suportarem. É preciso a gentil franqueza do pênis de uma travesti para tranqüilizá-lo. É preciso algo que ele compreenda naquele corpo tão perfeito. Só uma travesti sabe ser a mulher idealizada. Por que só ela verdadeiramente SABE o que um homem sente e quer. Só ela compreende, por empatia, as taras e fantasias masculinas.

Já o homossexual masculino não vai nunca procurar uma travesti. Muitos malham, ficam fortes porque aquela imagem de mulher mexe com a cabeça deles de um jeito negativo. Não atrai de jeito nenhum. Eles querem o oposto disso. Para alguns, os mais afeminados, é algo que eles queriam ser, não ter. Nesse sentido, acho que existe uma rincha. Não por parte das travestis, que são, digamos, mais bem resolvidas. Os homens heteros não querem o gay, querem a travesti. Então, existe essa competição. Tanto é que, quando você vira travesti, você perde muitas amizades com gays. Você sente a diferença. Por exemplo, assim que virei travesti, a gente ainda ia nas baladas juntos, via um carinha bonitinho e às vezes ele olhava para mim, a travesti, não o gay. Aí rolava aquela inveja e isso acabava fazendo com que eles se distanciassem.

Mas, são tantos que gostam de travestis! Porque a gente conhece, né? Vai numa festa hetero e alguns olhares não estão te paquerando, só olhando, mas muitos, muitos mesmo dizem assim: “se mexer aqui, sai alguma coisa”. Uma grande parte dos homens sairiam com uma travesti bonita. Tenho certeza. A gente sabe essas coisas. Existem muitos que não conseguem assumir nem pra eles mesmos.

Por exemplo, no MSN. Já vi homens que ficam a vida inteira por trás de um monitor, querendo fazer sexo virtual com a travesti, querem ver o pênis dela, mandam mostrar e se masturbam, mas nunca têm coragem de chegar e marcar um encontro. Ficam só no virtual. Só na fantasia.



Grande parte do medo de realizar essa fantasia se deve ao preconceito que paira sobre a figura da travesti. O gênero não é reconhecido. A travesti é sexualmente transgressora, socialmente marginal. Para muitos, é a vulgaridade que repele. Mas, o que seria da prostituta, se não vulgar? E o que seria da travesti, se não prostituta?


O problema da aceitação social da travesti é um círculo vicioso, que normalmente começa na adolescência. O menino começa a manifestar tendências afeminadas e na escola, vira alvo de chacota e discriminação, de tal forma que a vida escolar passa a se tornar insuportável, levando-o a abandonar os estudos antes de concluir o segundo grau. Sem estudos, as opções profissionais se restringem muito, além do fato de haver o preconceito também dentro do mercado de trabalho contra as pessoas de gêneros alternativos. Você consegue, por exemplo, imaginar uma travesti de tailler numa reunião de negócios de alguma grande corporação?



Assim é traçado o caminho da maioria das travestis, congestionando a via que se bifurca na indústria da moda e beleza, onde muitas são cabeleireiras e manicures, ou a do sexo, desde a prostituição propriamente dita, a participações em filmes pornô e ensaios fotográficos clandestinos. Então, se a grande maioria vive marginalizada, confinada aos salões ou guetos de prostituição, a sociedade as discrimina ainda mais, reafirmando a (muitas vezes) falsa teoria de que travestis são pessoas fúteis e promíscuas e que, portanto, não têm lugar onde reinam a família e os bons costumes. Como se alguns nobres membros dessas mesmas famílias, supostos praticantes desses bons costumes, não fossem, eles mesmos, os clientes sorrateiros que apanham as travestis nas ruas escuras e pagam pela fugaz adrenalina de alguns momentos de prazer radical e descartável.

Ao final da festa, já não éramos mais os mesmos. Nesse chá de bebê inesperado, houve um enorme exercício coletivo de humanidade. Homens, mulheres, travesti, seres humanos interagiram, flexibilizando papéis sociais outrora cimentados pelos gêneros. Quem lá esteve pôde tomar, muito além do chá, um banho de diversidade e tolerância. Os votos da madrinha são de que, no mundo de Helena (a futura bebezinha), esse cenário colorido se torne cada vez mais comum.


SOBRE O CASO RONALDO

Não adianta ele falar que é a primeira vez que fez isso porque eu já tinha ouvido falar que lá na Europa ele já procurava. Tenho muitas amigas na Itália, que foram para lá fazer prostituição.


Quem é que diz?
Quem é feliz?
Quem passa?

A codorniz
O chamariz
A caça

Três travestis
Três colibris de raça
Deixam o país
E enchem Paris de graça

Caetano Veloso



E essas minhas amigas já tinham me contado que ele tinha saído com fulana de tal travesti. Até achava que era mentira, mas, quando saiu a notícia, comecei a juntar as coisas. Acho mesmo que ele estava sob o efeito de bebida e/ou droga, e saiu por aí desse jeito e, sei lá, com o tesão louco da droga, acabou pegando essas de rua mesmo, que simplesmente estavam ali. Como um cara alucinado costuma fazer, acabou nem escolhendo, pegou e nem viu direito se era feia ou bonita. Ele queria travesti. Pegou três, levou lá. Acho que uma dada hora, ele mandou buscar mais droga, e uma das travestis saiu para buscar. Foi aí que ele percebeu que o dinheiro dele acabou, aí ele dividiu o dinheiro entre as que ficaram lá. E quando a outra voltou, quis a parte dela e ele já não tinha mais. Não ia dar um cheque ou ir no caixa eletrônico tirar dinheiro. Não tinha cabimento. Mandou ela dividir entre as amigas e foi nesse momento que ela se aproveitou do fato de ele ser famoso e fez aquele escândalo todo.



E com certeza elas foram compradas para retirar todas as queixas. E o que aconteceu com ele acontece direto. Eu já vi vários casos de travestis que se aproveitam do constrangimento social para extorquir o cara, seja ele famoso ou não. Porque normalmente quem procura travesti é casado ou tem namorada. Na verdade, é comum ter de tudo, até adolescente de 16 anos, mas o fato é que a maioria tem dificuldade de assumir isso socialmente e as travestis sabem disso. Algumas, infelizmente, se aproveitam.


Travestis que se aproveitam da situação de vulnerabilidade de seus clientes para tirar vantagem ajudam a reforçar a má fama do gênero. Mas, é incabível generalizar o quer que seja, inclusive os gêneros. É o mesmo que dizer que toda mulher é sexualmente passiva e todo homem pula a cerca. Os estereótipos só dão força à intolerância. E o mais lamentável dessa história é que essa teria sido uma grande oportunidade para a mídia levantar a discussão sobre as travestis. Ajudar a diminuir a discriminação, tanto contra o gênero, quanto contra quem,
por assim dizer,o consome. Em vez disso, a imprensa caiu em cima do Ronaldo, colocando sua moralidade em xeque, encurralando-o para a posição defensiva, e creditou o discurso daquelas travestis, transformando-as em caricaturas perfeitas da imagem mental que a sociedade já tem sobre o gênero: grotescas e vulgares. É absurdo que formadores de opinião, jornalistas, em vez de esclarecer e ajudar a desfazer mitos e tabus do comportamento sexual, apenas reafirmem estereótipos e normalizem regras concretadas de conduta social. Dá vontade de gritar: “Gente, vocês estão falando mal de mim, mas eu estou aqui ó! Estou ouvindo tudo”! E, como eu, tem mais meio mundo.


A linda Michelly


*Aqui é importante ressaltar que ser travesti não é uma orientação sexual, mas sim uma orientação de gênero. Há uma grande variedade de orientações sexuais dentro do mesmo gênero travesti. Por exemplo, há casos de travestis que se relacionam com mulheres. Michelly citou um casal de amigas, onde uma é lésbica e a outra, travesti (veja também a matéria Marie Claire). O que se pode dizer da orientação sexual das duas?