segunda-feira, 3 de novembro de 2008

Paulista paulistana

Essa é a minha terceira temporada em São Paulo. A primeira foi com uma semana de idade, recém chegada ao mundo por intermédio de um médico em Presidente Prudente, que, ouvi dizer, é muito, muito quente. Depois de uma semaninha de vida, uma paulista em meio aos paulistanos.

Não posso dizer que lembro com clareza dessa época. Lembro-me apenas das lembranças de minha mãe. Do orgulho com que ela revelava o nosso (antigo) endereço: esquina da Augusta com a Alameda Lorena. O emprego do meu pai: lingüiça do Yázigi, na 9 de julho. Como era bizarra a profissão de meu pai... até eu aprender que um lingüista é bem diferente de uma lingüiça. Anos na obscuridade e uma vida com uma inexplicável aversão à carne de porco.

Aqui tive minha primeira cachorrinha, Camila. Adorávamos, Camila e eu, o Ibirapuera e sua grama infinita. Ademais eram passeios de carrinho pela quarta maior metrópole do mundo, orgulhosa, curiosa, bem-vestida: um bebê cosmopolita.

Ao fim de meu primeiro ano, houve um breve intervalo em minha exploração da paulicéia. Três palavras o explicam: pai, mestrado, UNICAMP. Agora meu pai seria um sociolingüiça (cada vez mais complexo, mas estava prestes a descobrir a verdade).

O qúadruplo da minha idade se passou e, com meu pai-mestre, estava eu novamente aportando na Paulicéia. Pouca coisa havia mudado. O Ibirapuera ainda estava lá, com sua grama agora ligeiramente menos infinita. Lembro claramente que foi nessa época que adquiri a minha primeira noção de multidão e também, paradoxalmente, a minha primeira noção de solidão. Aos cinco já vivia, como vivem muitos dos milhões de brasileiros e estrangeiros de São Paulo: sozinha na multidão. Ainda bem que havia a Camila.

Retomei minha exploração. Mundo, mundo, vasto mundo. São Paulo era um mundo. Para mim um mundo de cultura (infantil). Show do Gilberto Gil (Universo paralelo -- Sítio do Pica-pau Amarelo --No país da fantasia --Num estado de euforia --Cidade Polichinelo ). Mágica na Paulista. Os Saltimbancos. "Au, au, au, i-ó, i-ó" não saía da minha cabeça. Aliás, minha ligação com a metrópole tinha a trilha-sonora da peça.

Ainda hoje, quando percorro as trilhas da capital, em meio a maravilhas e mazelas, ouço a voz do jumento, velho e sabido, prevenindo: "A cidade é uma estranha senhora que hoje sorri e amanhã te devora".

Mas, nesse tempo havia meus pais e suas mãos a me guiarem pela cidade. A estranheza da Senhora Paulicéia se dissipava naquelas mãos e eu dormia, ainda na esquina da Augusta com a Alameda Lorena, enquanto tocava silenciosamente, como num filme, a letra de Chico Buarque na melodia do italiano (Bardotti):

"Dorme a cidade
Resta um coração
Misterioso
Faz uma canção
Soletra um verso
Lá na melodia
Singelamente
Dolorosamente (...)"

Mais uma interrupção. Essa muito, muito longa. Pai, doutorado, Washington-DC, Georgetown University. De lá rodei o mundo, rodei pião, e parei meio tonta, quase 30 anos depois, casada, mãe e aluna de jornalismo da ECA-USP.

Sinto que até hoje não conheço São Paulo e os vastos mundos que a compõem. Estou na mais populosa capital brasileira e vivo meio que cercada apenas pelo meu mundinho. Mais um na multidão.

Às vezes mordo um pedaço da cidade nos cinemas, teatros, parques e engarrafamentos. Bebo um gole de Sampa pelos ouvidos atentos às gírias e ao sotaque, buzinas e sirenes e os enlouquecedores agudos dos motoboys. São Paulo penetra em meus olhos pelos muros e túneis pichados, os arranha-céus da Berrini, da Paulista e da Faria Lima. Os perfumes da cidade exalam dos rios Pinheiros e Tietê, dos diversos pescoços e pulsos que consomem nos shopping centers, e às vezes, no Butantã, sinto o cheiro de damas da noite, damas de toda sorte e espécie. Algumas delas são flores, outras gostariam de ser... Todos os meus sentidos captam, o mais que podem, retalhos da cidade.

Tal como a velha e estranha senhora, o que faço com maior freqüência é devorar São Paulo, sem mastigar, sem distingüir o que há de bom do que há de ruim. Engolindo os dias e as noites, os meses e os anos. Ainda assim "a cidade não para, a cidade só cresce" e é curioso o quanto ainda há para conhecer, para apreender, para inalar, para interpretar. E o melhor de tudo é que, com a nova profissão que escolhi, posso divulgar São Paulo, suas mazelas e maravilhas. E é exatamente nesse diálogo com a multidão, nessa inspiração e expiração da cidade, que se faz, dentro de mim, a certeza de não mais estar sozinha.

"Doce a música
Silenciosa
Larga o meu peito
Solta-se no espaço
Faz-se certeza
Minha canção
Réstia de luz onde
Dorme o meu irmão"

...Mas, como ainda sinto falta daquelas mãos...